Rafael Valentini
Era uma gélida terça-feira do terceiro decanato de outubro de 2014. Estava no escritório finalizando minhas tarefas, quando por volta das 21 horas o telefone tocou.
Atendi ao telefone e uma voz triste, porém esperançosa, começou a falar. Era a Sra. Adriana procurando pelo sócio do escritório, o iluminado Marcelo Feller, para falar do problema de seu sobrinho que fora preso. Disse a ela que Marcelo já havia ido embora, mas diante da voz fúnebre do outro lado da linha não hesitei em perguntar: “Está preso?” A resposta esperada, veio: “Sim”.
Passei para ela o celular do Marcelo, pois, ali, era a única forma que eu via de manter acesa sua luz de esperança. Luz essa que em seu íntimo fazia daquela ligação a última das velas.
No dia seguinte, Marcelo veio falar comigo. Ele havia se sensibilizado com o caso e pediu para que eu o ajudasse. Perguntei o nome do rapaz preso e descobri que nosso novo constituinte era na verdade uma criança de 14 anos, de prenome Gustavo.
Horas depois recebi no escritório a visita do Sr. Carlos, pai de Gustavo e cunhado de Adriana. Não gosto de separar pessoas as pessoas com base no maniqueísmo do “bem” e “mal”. Mas, sinceramente, poucas vezes senti tanta bondade, pureza e honestidade, como senti no Sr. Carlos. Caboclo, e morador da periferia paulistana há 33 anos, ele é daqueles “brasileiros” mesmo, no sentido folclórico do termo. Enfim, ele começou a me contar o que aconteceu com seu filho.
Segundo o Sr. Carlos, Gustavo estava passeando com o cachorro do barbeiro do bairro, quando um grupo de meliantes passou por ele fugindo da polícia. E que por uma absoluta fatalidade do destino, a polícia deteve o guri pensando ser um dos larápios que há pouco subtraíra, mediante grave ameaça exercida com arma de fogo, a carga de um caminhão.
Claro que esse poderia ser mais um de tantos pais e mães que vivem beatificando seus filhos – principalmente quando são presos. Entretanto, fiquei espantado quando o Sr. Carlos me disse que as duas vítimas do roubo (motorista do caminhão e seu ajudante) tinham lhe dito na delegacia que Gustavo não era um dos assaltantes. E mais. O Sr. Carlos me trouxe dois papéis, os quais eram declarações das duas vítimas se qualificando civilmente e dizendo que Gustavo não era um dos assaltantes. Ah, pasmem, ambas com reconhecimento de firma.
Fique angustiado! Ainda no escritório, comentei com o eficiente Gabriel Thompson e com a sorridente Helena: “E se realmente um menino de 14 estivesse preso por, vamos dizer (no mínimo), um equívoco da polícia?”.
No dia seguinte, fui ao Fórum da Infância e Juventude para pegar cópia do processo e entender melhor o caso. Aqui, o primeiro (breve) parênteses: não existe nenhum lugar do Poder Judiciário tão triste quanto o Fórum da Infância e Juventude. Sem querer fazer um juízo moral de quem são as crianças ali processadas e quais crimes, em tese, praticaram, é muito triste você ver crianças enfileiradas com uniformes da Fundação Casa, quando na realidade deveriam estar numa escola, na biblioteca, num parque. Claro que existem menores de altíssima periculosidade, mas a mentalidade de um país que pretende deixar o rótulo de “terceiro mundo” não pode ser de “prender, prender e prender”. Principalmente crianças.
Voltando ao caso de Gustavo, quando comecei a ler seu processo sequer imaginava que aquele era o meu primeiro contato com uma das maiores aberrações da Justiça que até então já vi na minha vida.
Eis a versão posta no auto de flagrante: Gustavo e mais sete indivíduos roubaram um caminhão. Conduziram o veículo até determinado local para que pudessem saquear a carga. A polícia foi acionada e quando chegou ao local todos os indivíduos se evadiram, com exceção de um: Gustavo. As duas vítimas que estavam no caminhão reconheceram o garoto como um dos gatunos, “sem sombra de dúvidas” (posteriormente, as vítimas procuraram o Sr. Carlos para dizer que não fizeram reconhecimento nenhum de Gustavo. Na realidade, os responsáveis pela formalização do auto de flagrante inseriram aquelas informações de livre e espontânea vontade). O flagrante chegou ao Ministério Público e, em seguida, veio a representação (a “denúncia”, nos casos que envolvem adolescentes): roubo consumado com três causas de aumento de pena. Um bom tempo de internação para o menor.
O juiz aceitou a acusação, manteve Gustavo preso, e marcou uma primeira audiência.
Como até então não havia nenhum patrocínio de advogado, a Defensoria Pública passou a atuar. Uma jovem e simpática Defensora juntou no processo as declarações das vítimas que o Sr. Carlos havia me trazido no dia anterior, e pediu a imediata soltura de Gustavo por absoluta falta de provas no tocante a sua participação naquele roubo. Assim estava o processo quando cheguei ao fórum. Aqui, o segundo – talvez último, sei lá, ainda estou escrevendo – (breve) parênteses: nunca canso de ressaltar minha profunda admiração pelo trabalho da Defensoria Pública, a qual, como estagiário, já fiz parte. Valho-me das palavras do saudoso Ministro Humberto Gomes de Barros: “Se a Advocacia é uma das mais belas profissões, a Defensoria Pública é a mais bela das Advocacias”. Um verdadeiro sacerdócio.
De volta ao Fórum da Infância e Juventude, não perdi tempo e juntei logo a procuração para os advogados do escritório. Mais. Peguei o processo e fui conversar com o Juiz; explicar o que estava acontecendo. Lá em seu gabinete pedi para que ele analisasse o pedido feito pela Defensoria Pública. Contudo, o concursado e togado debochou do pedido. Debochou das declarações feitas pelas vítimas. E pra finalizar disse que faltavam “apenas” duas semanas para a audiência, “então Gustavo poderia aguardar até lá”.
Não baixei a cabeça. Voltei para o escritório e impetramos habeas corpusperante o Tribunal de Justiça de São Paulo. Entretanto, nova derrota: a medida liminar foi indeferida pelo nobre Desembargador, sob o argumento de que “os autos revelam que há indícios suficientes de autoria” (cogitei escrever uma carta ao nobre Desembargador alertando-o que na salada se põe vinagre, e não cachaça. Surreal…) Contra a decisão, cogitamos impetrar habeas corpusperante o STJ, mas dada a proximidade da audiência seria pouquíssimo provável que o Ministro Relator apreciasse a tempo a medida liminar. O jeito era esperar.
No dia da audiência, eu e a sócia do escritório, a altruísta Amanda Pacífico, fomos ao Fórum. Encontramos com o Sr. Carlos e a Adriana na entrada. E a batalha daquele dia não começava bem. Ambos tinham acabado de voltar do velório do genro do Sr. Carlos (cunhado de Gustavo), que morrera dias antes de ataque cardíaco. Tempos difíceis!
Entramos na sede da justiça juvenil e resolvemos conversar com a Promotora de Justiça responsável pela acusação de Gustavo. Quando a encontramos, explicamos a gritante falta de justa causa para aquele processo e, com um raciocínio impecável, Amanda a fez enxergar o absurdo que era a internação daquele menino, a ponto da Promotora expressar uma face melancólica (daquelas de quem comeu e não gostou) e dizer: “conversamos na audiência”.
Minutos antes da audiência, conversamos com a jovem e simpática Defensora Pública que cuidara do caso até sermos constituídos. Ela nos disse algo assustador: o concursado e togado se revoltou com a juntada das declarações das vítimas (que lembrem-se, eram no sentido de que Gustavo não era um dos autores do crime), inclusive ameaçando processá-la. Ou seja, não basta ser insensível e reacionário, tem de, ainda, suplantar a sagrada garantia constitucional da ampla defesa.
O cenário só piorava. A amargura de ver o destino de Gustavo na mão da dupla Batman e Robin, pertencente à linha de frente da ala extrema conversadora, fez com que eu e a Amanda ficássemos pilhados para a audiência.
Entramos na sala de audiência. O concursado e togado, em tom elevado, me perguntou se Gustavo iria confessar. Respondi, em tom padrão, que só me manifestaria após a Promotora de Justiça. E então veio a proposta arcaica de liberdade: Se Gustavo confessasse o crime, a acusação pediria sua liberdade assistida (iria para a rua, mas tendo alguns compromissos temporários com a justiça). Se não confessasse, ficaria preso, até a próxima audiência (que seria de instrução; produção de provas). Digamos que é uma forma “eficaz” da Justiça acabar logo com os processos e, assim, diminuir o atolamento de árvores em formato A4 nos gabinetes e promotorias.
A decisão não cabia a nós, Amanda e Valentini, mas sim a Gustavo e família. Mesmo que inconformados com a “chantagem da justiça”, aceitaram o “acordo”, afinal, era a chance de Gustavo jantar em casa depois de tantos dias internado.
E, amém, Gustavo foi solto. A liberdade daquele mancebo estava de volta, e a justiça estava feita.
Opa, péra! Justiça? Onde está a Justiça!? (i) As vítimas de um roubo se propuseram a declarar (fazendo reconhecimento de firma de suas assinaturas) que Gustavo não era um dos indivíduos que assaltaram o caminhão. (ii) Os policiais responsáveis pelo auto de flagrante inseriram no auto de flagrante que as vítimas haviam reconhecido Gustavo como um dos meliantes sem qualquer consulta aos ofendidos. (iii) Para conseguir sua liberdade, Gustavo foi coagido pela Justiça a confessar um crime que não fez, caso contrário, aguardaria preso até o dia da audiência de instrução para produção de provas (as declarações feitas pelas vítimas não eram provas, claro. Tsc tsc tsc.).
Odeio fazer comparações de classes, mas neste momento é inevitável: quais são as chances de um menino de 14 anos, de classe média alta, branco, ser preso por “confusão” da polícia enquanto passeia com o cachorro do barbeiro? Pois é, essa é a Justiça.
Justiça que não pune só os homens, mas também os animais. Afinal, faço questão de ressaltar que o cachorro, ao contrário de Gustavo, não foi preso por engano. Mas preciso avisá-los: ele não sabia voltar para casa sozinho…
Fonte: https://rafaelvalentini.jusbrasil.com.br/artigos/161175718/gustavo-o-cachorro-e-a-in-justica