Medidas protetivas de urgência: autônomas ou dependentes?
Nos meses de junho e agosto de 2022, o Tribunal de Justiça de São Paulo enfrentou em duas oportunidades a discussão sobre a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência nos casos de violência doméstica, em especial sobre a (in)dependência de tais medidas a outro procedimento, penal ou cível, chegando a conclusões diferentes.
Previstas na “Lei Maria da Penha” (Lei n.º 11.340/2006), as medidas protetivas de urgência surgiram como mecanismo de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, abrangendo não só medidas de proteção à vítima – arts. 22 e 23 -, como também obrigações ao agressor – art. 22, como por exemplo suspensão de posse de armas, proibição de frequentação de determinados lugares etc. -.
No Habeas Corpus n.º 2146122-79.2022.8.26.0000[1], a 2ª Câmara de Direito Criminal concedeu a ordem para revogar as medidas protetivas de urgência deferidas em favor da vítima, ante a ausência de representação pelo crime de stalking, e consequente inexistência de procedimento criminal atrelado às protetivas.
De forma contrária, a 5ª Câmara de Direito Criminal negou provimento ao Recurso em Sentido Estrito n.º 0004012-44.2021.8.26.0318[2] interposto contra decisão que indeferiu a revogação das medidas protetivas, apesar do arquivamento do Inquérito Policial relacionado, por reconhecer que tal medida não é acessória à peça policial, nem tampouco vinculada a procedimento de qualquer natureza.
Ao se compreender que tais medidas possuem natureza penal acessória, como no mencionado julgado da 2ª Câmara de Direito Criminal, a inexistência de procedimento criminal em trâmite, e por pressuposto a representação criminal da vítima nos crimes que assim exigem, levará invariavelmente ao arquivamento das medidas protetivas de urgência ou ao seu não deferimento, mesmo diante de atual situação de violência.
Por outro lado, ao se compreender que tais medidas possuem natureza cautelar cível satisfativa, como no mencionado julgado da 5ª Câmara de Direito Criminal, haverá a possibilidade, mesmo diante da inexistência de procedimento criminal ativo, ou mesmo de interesse da vítima que o agressor seja processado, do deferimento das medidas protetivas ou mesmo de sua continuidade enquanto perdurar a situação de violência.
Assim é que a compreensão acerca da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência, muito longe de mero capricho teórico, apresenta significativos reflexos de ordem prática, especialmente, como visto nas diferentes concepções externadas no âmbito do Tribunal paulista, se tais medidas são cautelares acessórias ou independentes.
Acordo de colaboração premiada e suas controvérsias
Introduzido pela Lei n.º 12.850/2013, o acordo de colaboração premiada é um meio de obtenção de prova no qual, o Ministério Público ou Autoridade Policial celebra negócio jurídico com o investigado/processado, representado por advogado, para que auxilie no descortinamento de fatos criminosos em contrapartida a benefícios processuais, que variam desde o perdão judicial até redução de pena e progressão de regime.
Nos meses de junho e agosto de 2022, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ se debruçou sobre duas questões importantes e inéditas no âmbito daquela Corte envolvendo justamente o acordo de colaboração premiada.
No Habeas Corpus n.º 582.678/RJ[3], os Ministros da Sexta Turma do STJ assentaram o entendimento de que o acordo de colaboração premiada é possível de ser celebrado em quaisquer condutas praticadas em concurso de agentes, independentemente da caracterização do delito específico de organização criminosa.
Conforme voto condutor da Ministra Relatora Laurita Vaz, considerando que (i) acordos para redução de pena estão previstos de maneira esparsa na legislação e foram criados também para beneficiar delatores; (ii) o Código de Processo Penal não regulamenta o procedimento para formalização de acordos de delação premiada; e (iii) a Lei das Organizações Criminosas não prevê, de forma expressa, que os meios de prova ali previstos incidem tão-somente nos delitos de organização criminosa, conclui-se que não há óbice para que as disposições de natureza majoritariamente processual previstas na referida Lei apliquem-se às demais situações de concurso de agentes
Ainda de forma inédita, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a um Recurso em Habeas Corpus para declarar a ineficácia da colaboração premiada celebrada entre o Ministério Público de São Paulo e a empresa Comércio e Construtora Camargo Corrêa, ao reconhecer a impossibilidade de pessoa jurídica celebrar o acordo processual previsto na Lei n.º 12.850/2013.
Assentaram os Ministros da Sexta Turma, nos autos do Recurso em Habeas Corpus n.º 154.979/SP[4], que a ausência de previsão explícita de indicação da pessoa jurídica como parte do instituto da colaboração premiada impossibilita o seu reconhecimento como ente capaz de celebração do acordo.
Conforme o voto condutor do Ministro Relator Olindo Menezes, a colaboração premiada tem o objetivo personalíssimo de conceder ao colaborador a possibilidade de obter uma redução ou mesmo isenção de pena, o que, até mesmo pela excepcionalidade da norma penal ou processual penal, não se aplica às pessoas jurídicas, cuja responsabilidade penal se limita aos crimes ambientais.
Ainda, como não se mostra possível a responsabilização de pessoa jurídica como investigada ou acusada no tipo de crime de organização criminosa, também não seria lícito qualificá-la como ente capaz de celebrar o acordo de colaboração premiada, menos ainda em relação aos seus dirigentes, aos quais pertence essa opção personalíssima.
Em que pese ainda existirem diversas controvérsias sobre o acordo de colaboração premiada, que certamente chegarão ao debate perante os Tribunais Superior em breve, as decisões destacadas trazem parâmetros importantes para esse ainda novo instituto processual penal, cada vez mais presente nas grandes operações federais e estaduais.
[1] TJSP. Habeas Corpus Criminal 2146122-79.2022.8.26.0000. Relator Des. Alex Zilenovski. 2ª Câmara de Direito Criminal. Julgado em 01/08/2022.
[2] TJSP. Recurso em Sentido Estrito 0004012-44.2021.8.26.0318. Relator Des. Pinheiro Franco. 5ª Câmara de Direito Criminal. Julgado em 08/06/2022.
[3] STJ. HC n. 582.678/RJ. Relatora Min. Laurita Vaz. Sexta Turma. Julgado em 14/6/2022.
[4] STJ. RHC n. 154.979/SP. Relator Min. Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região). Sexta Turma. Julgado em 9/8/2022.