‘BBB dos presos’: Vizinha de CDP grava detentos em SP

Vídeos de detentos durante banhos de sol, partida de futebol e conversas no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Pinheiros, na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo, estão sendo compartilhados nas redes sociais por uma vizinha da unidade, em uma espécie de “BBB dos presos”.

O que aconteceu
Primeiro vídeo foi publicado na segunda-feira (3) e ultrapassou 3,1 milhões de visualizações no TikTok. No registro, a partir da janela do apartamento, a mulher usa o celular para dar zoom em um dos prédios do CDP onde os presos estão no período vespertino. Alguns estão sentados, enquanto outros andam e conversam.

Em quatro dias, a vizinha do CDP publicou cerca de sete vídeos na plataforma. Dois registros ficaram indisponíveis após a reportagem entrar em contato com dona do perfil onde os vídeos foram postados. Um dos vídeos mostrava, em outro espaço da prisão, dois detentos olhando em direção ao local de onde a cena era gravada. Um deles chega a acenar, dando “tchau”. Nesse mesmo registro, ao menos dois agentes penais aparecem em uma das torres de segurança do CDP.

O outro vídeo — agora indisponível — mostrava uma partida de futebol entre os presos em um dos prédios do CDP. As gravações, segundo a dona do perfil em resposta a um comentário, seriam feitas com um iPhone 15 Pro Max.

Além do primeiro registro, outros quatro seguiam no perfil até a noite de quinta-feira (6). Em um deles, a mulher mostra a visão que tem de uma das janelas no quarto de seu apartamento, onde é possível visualizar dois prédios do CDP. Em outro post, a moradora mostra a vista que tem de mais três prédios da unidade e dos trilhos de trem. Ela também compartilha a visão de outros dois prédios do Centro de Detenção Provisória a partir de outra janela. É possível ver alguns panos estendidos em um varal.

Os dois últimos vídeos postados também mostram o apartamento e a visão que a moradora tem do CDP. No perfil, a mulher também abriu ao menos uma transmissão ao vivo em que
respondia aos questionamentos dos seguidores sobre morar perto da unidade prisional e mostrava algum prédio do CDP.

Procurada pelo UOL, a dona do perfil que faz as publicações pediu para que seu nome não fosse divulgado. Ela disse apenas que “se não quisessem que ninguém visse o presídio, não deveriam permitir que construíssem residências próximas a ele”. “Porque a única
coisa que eu fiz foi gravar a vista da minha casa”, finalizou.

Polícia apura o caso
Boletim de ocorrência sobre o caso foi registrado na manhã de quarta-feira (5) no 91ºDP (Ceasa). A reportagem do UOL apurou que o B.O foi realizado por um funcionário do CDP após pedido da própria unidade.

O caso é apurado pela Polícia Civil. Em nota, a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo ressaltou “que a divulgação de imagem sem autorização viola o artigo 5º, inciso 10 [que dispõe sobre o direito de imagem das pessoas], e trata-se de ilícito civil, passível de indenização”. “Caso seja constatado indício de crime, a instituição
[Polícia Civil] adotará as devidas providências de polícia judiciária”, diz o texto.

SAP confirmou o registro do boletim para apurar “possível cometimento de infração penal”. A Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo esclareceu que uma apuração preliminar interna também foi instaurada para investigar se os registros
compartilhados nas redes sociais provocaram o “comprometimento da segurança dos servidores e das instalações prisionais”.

Sindicato aponta problemática em veiculação das imagens. O SIFUSPESP (Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional de São Paulo) declarou ao UOL entender que os registros colocam em risco a segurança dos policiais penais e servidores que atuam no CDP.

Citando um vídeo em que ao menos dois agentes aparecem, o sindicato indicou que “muitos policiais penais não revelam sua profissão publicamente para evitar ameaças ou represálias”. “No entendimento do sindicato, outro problema é a exposição detalhada da arquitetura da unidade, o que pode aumentar a vulnerabilidade do local.”

Advogados não veem crime em divulgação dos vídeos

Advogado criminalista ouvido pelo UOL diz que conteúdo divulgado por vizinha de CDP não configura crime. Fernando Hideo Lacerda, que também é mestre e doutor pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), disse que o ordenamento jurídico brasileiro não prevê como crime o ato de fotografar, filmar ou captar a voz de pessoa sem autorização. Segundo ele, há um projeto de lei que tramita no Congresso Nacional, apresentado em maio de 2015, que discorre acerca do tema.

Apesar de entender a não configuração de crime, o advogado aponta que isso não significa que a divulgação dos vídeos seja lícita. Ele explicou que a divulgação de imagem sem autorização pode caracterizar ilícito civil e levar a indenização dos envolvidos por eventuais danos morais e materiais.

Lacerda ainda acrescentou que cabe ao Estado pensar em soluções de segurança. Na avaliação do advogado, o Estado deve pensar na construção de barreiras físicas e soluções arquitetônicas que evitem contato, interferência e registros externos, de modo a prover a estrutura de segurança adequada tanto aos presos quando aos policiais penais.

Outro advogado criminalista também não vê crime na veiculação do conteúdo. Para Rafael Valentini, especialista em processo penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, a mulher está no direito de filmar o que ela visualiza a partir da casa dela e publicar nas redes sociais, mas ela assume o risco de alguém interpretar que ela “foi além” dos seus direitos.

Porém, o especialista ressalta que os investigadores do caso podem ter outro entendimento. Um deles, apontado como “incomum” por Valentini, seria o previsto no artigo 265 do Código Penal, que fala sobre prejudicar a segurança de serviço público. A outra opção seria uma contravenção penal (ou seja, uma infração penal menos grave), de perturbação do sossego dos agentes penais, do desenvolvimento das atividades diárias da unidade ou mesmo dos próprios presos.

Mas eu acho uma forçação de barra. Não é isso, eu acho, que é o propósito desse crime. Mas, para você iniciar uma investigação, você não precisa ter a certeza do crime, basta ter um indício ali para procurar e depois conclui se o crime aconteceu ou não. Aqui eu acho que daria para a gente forçar nesse sentido.

Rafael Valentini, advogado

Questões de segurança estão envolvidas no caso

“Ela mapeia a unidade visualmente” com as publicações, diz o Valentini. “Isso pode ser útil para planos de resgate, para algum tipo de tentativa de fuga, criação de um túnel”, explicou. Ele ainda acrescentou afirmando ser altamente recomendado que a moradora não divulgasse que tem acesso à dinâmica do que ocorre na estrutura do CDP até por autoproteção, já que algum criminoso ou membro de facção criminosa pode forçá-la a repassar esse conteúdo.

Repercussão e exposição do conteúdo é preocupante, avalia policial federal. Para Roberto Uchôa, que integra a PF e é conselheiro do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), é alarmante a exposição das rotinas do estabelecimento prisional, a divulgação da arquitetura da unidade, a exposição dos presos e, principalmente, dos funcionários que trabalham no presídio. “São informações que podem ser usadas para facilitar ações criminosas e que fragilizam todos que trabalham na unidade”, avaliou.

“São novos desafios que o avanço da tecnologia impõe. Ao mesmo tempo que a tecnologia pode ser uma aliada, como são as câmeras corporais, podem também ser utilizadas a favor dos criminosos ao expor fragilidades.”
Roberto Uchôa, policial federal e conselheiro do FBSP

‘Nada justifica a exposição’, diz pesquisadora

“É inadmissível imaginar que uma pessoa privada de liberdade tenha sua dignidade desrespeitada”: Juliana Brandão, pesquisadora sênior do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) diz que não há justificativa para a invasão do direito de imagem dos detentos, e cabe ao Estado analisar o que permitiu com que um espaço que deveria ser preservado fosse “invadido” dessa forma, acrescentando a complexidade que esse caso ganha com a repercussão na internet.

A pesquisadora também reforçou ao UOL que os presos no CDP de Pinheiros estão em uma unidade provisória. Ou seja, eles ainda aguardam julgamento para uma sentença definitiva ou absolvição da acusação. “Você está falando de pessoas que o Estado trabalha com a presunção de inocência, que também é uma garantia constitucional. Na medida em que eu veiculo essa imagem e associo aquela pessoa que está naquele estabelecimento com a pessoa que já está condenada [já que os cidadãos não sabem que é uma unidade provisória], eu estou violando esse princípio constitucional, violando uma garantia de um devido processo legal.”

“Nada justifica a exposição de uma pessoa que está em cumprimento de uma pena privativa de liberdade ou mesmo a pessoa que está numa condição de detenção provisória, mas que está sendo custodiada pelo Estado, que ela tenha sua imagem vinculada dessa forma, sem autorização. Sem que esse tipo de conduta seja apurada e dadas as consequências àquelas pessoas que estão conseguindo ter acesso [à unidade prisional] e estão promovendo essa violação dos direitos.”
Juliana Brandão, pesquisadora sênior do FBSP

Fonte: Portal UOL

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