Rafael Valentini
O sagrado princípio da legalidade diz que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal). Trata-se de princípio tão importante que justamente um de seus desdobramentos é o que o inaugura o Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal” (artigo 1º).
Feita essa introdução, recentemente a Advocacia do Senador Federal emitiu o Parecer n.º 522/2023, a pedido da Senadora Eliziane Gama (PSD-MA), que traz em sua conclusão a possibilidade de realização de colaboração premiada no âmbito de Comissão Parlamentar de Inquérito (ou Comissão Parlamentar Mista), a despeito de não haver expressa previsão legal nesse sentido.
O instituto da colaboração premiada, que ficou nacionalmente conhecido durante as investigações e fases da “Operação Lava Jato”, está previsto e regulamentado na Lei 12.850/2013, sendo definido como “negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos” (artigo 3º-A).
Ao longo do texto da lei federal em questão, são feitas referências sobre a possibilidade de celebração de acordo de colaboração premiada entre o investigado e o Delegado de Polícia e/ou Ministério Público, como por exemplo o artigo 4º, § 6º (“O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor”). Sobre a negociação de acordos nas investigações conduzidas pelos membros do Poder Legislativo, não há qualquer referência.
Não se desconhece que, segundo a própria Constituição Federal, as “comissões parlamentares de inquérito, terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (artigo 58, § 3º). Porém, como a lei carrega palavras inúteis e nem eventual omissão do legislador pode ser presumida para fins de ampliar poderes de investigação, não é possível conferir todos os poderes de investigação previstos no sistema jurídico às Comissões.
Em outras palavras, o poder de estatal de investigar-punir conferido constitucionalmente ao Poder Legislativo não é absoluto e esbarra em outros preceitos igualmente relevantes, como o princípio da legalidade. Se assim quisesse, o próprio legislador que editou e até já alterou em outras oportunidades a Lei 12.850/2013 teria incluído expressamente as Comissões Parlamentares de Inquérito no rol de instituições com poderes para negociar a concessão de benefícios processuais aos investigados como contraprestação pelo fornecimento de informações relevantes.
Aliás, vale destacar que a colaboração premiada também está prevista em outras leis federais, como a Lei de Lavagem de Dinheiro (9.613/1998), Lei de Proteção aos Réus Colaboradores, Vítimas e Testemunhas (9.807/1999) e Lei de Drogas (11.343/2006), reforçando que o raciocínio de que o legislador, quando quer, inclui a colaboração premiada em determinados contextos de crimes e/ou investigações.
Considerando o crescimento do volume de Comissões Parlamentares de Inquérito, é possível que esse tema venha a ser mais profundamente debatido, especialmente pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. No entanto, uma coisa é certa: ao menos por ora, não há previsão legal que respalde a conclusão da Advocacia do Senado Federal no sentido de que “a CPI, mediante aprovação da respectiva proposta pelos seus membros, é legitimada a firmar o acordo de colaboração premiada para todos os crimes em que há concurso de agentes”.