Rafael Valentini
Era uma terça feira de agosto. Um calor atípico para o inverno da capital bandeirante perturbava alguns paulistanos. Entre os perturbados, advogados – por conta de suas volumosas vestimentas tradicionais – e também encarcerados (estes sequer precisaria dizer os motivos).
Pela manhã, fui ao fórum criminal da Barra Funda verificar o andamento de alguns casos. Um deles, o de um jovem que era acusado por tráfico de drogas, cujo nome era Tonho. Tonho muito provavelmente estava traficando quando foi preso em flagrante, entretanto, a decisão que converteu sua prisão em flagrante em prisão preventiva era sustentada por fundamentos absolutamente inidôneos (alguns até que já tinham sido declarados inconstitucionais pelo STF).
Depois da Corte de São Paulo indeferir nosso pedido de liminar, em sede de Habeas Corpus, impetramos novo HC no STJ. O Ministro Sebastião Reis Júnior deferiu a liminar para que Tonho fosse posto imediatamente em liberdade. Era a primeira batalha que ganhávamos naquela que ainda seria uma longa guerra.
A decisão monocrática do Ministro foi elaborada na sexta-feira anterior. O telegrama do STJ à vara criminal da Barra Funda, informando a concessão da medida, foi expedido também no mesmo dia. E o motivo pelo qual fui verificar o andamento do caso do Tonho era porque já era terça feira e o jovem ainda permanecia preso. Isso mesmo, o rapaz já estava injustamente preso há quatro dias.
Quando cheguei ao cartório da vara, perguntei a um serventuário sobre o tal telegrama, na tentativa de entender o que acontecia Ele, sentado em sua mesa, limitou-se a me dizer: “Doutor, não chegou ainda”. Ironicamente pensei comigo mesmo: “Nossa, este serventuário é quase uma máquina! Sabe o exato paradeiro de todos os ofícios, telegramas e afins que são direcionados ao seu cartório”.
Assim que o pensamento íntimo terminou, educadamente, e de forma diplomática, questionei ao serventuário: “Ok, mas como você sabe? Poderia por gentileza verificar pra mim?” Não esqueço a cara que ele fez de quem comeu e não gostou. Parecia que eu estava lhe pedindo um favor. Coisas da rotina do advogado.
Enquanto ele permanecia na sua mesa (provavelmente não pensando “ah, que advogado mais preocupado com seu cliente, todos deveriam ser assim”), o Diretor do cartório chegou. Ele disse bom dia ao serventuário o qual eu conversava, e logo tomou conhecimento do meu objetivo na visita ao cartório de sua chefia.
Finalmente, o serventuário resolveu procurar o tal telegrama. Não localizou, e tanto ele como o Diretor deixaram claro para mim que não havia chegado o bendito passaporte para liberdade de Tonho. Até aí tudo bem, afinal, o telegrama realmente poderia ter se perdido no caminho, alguém poderia tê-lo extraviado. Mas o que me incomodou de verdade foi a postura do Diretor.
Depois de receber a informação de que não localizaram o telegrama, fui à sala da OAB e imprimi o referido comunicado. Imprimi também o andamento processual do HC no site do STJ, que informava a concessão da medida liminar para que Tonho fosse solto.
Levei os documentos ao Diretor. Ciente de que o Diretor não iria acreditar na autenticidade dos documentos que levei (e com toda a razão), me propus a ligar ao STJ para que enviassem novamente o telegrama ao cartório. Também pedi ao Diretor que em paralelo entrasse em contato com o STJ para que confirmasse a autenticidade dos documentos que levei.
Até entendo quem não tenha a boa vontade de fazer essa confirmação que pedi ao Diretor. Mas, pera aí! O meu cliente já estava preso há 4 dias de forma injusta por trapalhadas da justiça! Alguém tinha que me ajudar.
E quando pedi essa ajuda ao nobre Diretor, ele disse “Doutor, eu não recebo honorários para fazer isso”. Olhei perplexo em seus olhos por dois segundos. Esses dois segundos pareceram uns trinta, pois durante eles uma gosta de suor, de raiva, me desceu pela testa e cogitei cuspir na cara do infeliz. Paciência.
Frustrado com o que tinha acontecido, liguei para o sócio do escritório e tivemos a ideia de elaborar uma petição ao juiz. Nessa petição, pedimos para que o Diretor confirmasse junto ao STJ a autenticidade do telegrama que imprimi na sala da OAB. Entretanto, o juiz ainda não havia chegado no fórum, e já eram 11:00. Sabendo que a grande maioria dos magistrados só chegam na sede do juízo após o almoço (a primeira audiência da pauta estava marcada para às 14:00), voltei ao escritório. Ao menos lá eu poderia ligar no STJ e tentar saber o paradeiro deste telegrama.
Com a petição em mãos, resolvi voltar ao fórum (após o horário de almoço, claro). Quando fui ao cartório para saber quem era o magistrado responsável pelo processo do Tonho, veio em minha direção uma serventuária da vara que acompanhou toda a cena ocorrida de manhã. Para a minha surpresa, ela me trouxe o tal telegrama, já juntado nos autos. Ela me disse que por um lapso este telegrama ficou esquecido na mesa de documentos para juntar desde segunda-feira… Enquanto isso, Tonho estava lá curtindo seu jumbo e vendo o sol nascer quadrado.
De todo jeito, fiquei muito feliz. Agora sim eu tinha a certeza de que Tonho sairia ainda naquela terça-feira. A serventuária, percebendo a falha do cartório, já estava terminando o alvará de soltura até. Era o fim da primeira batalha que ganhamos naquele caso.
Mas ainda existia uma batalha pessoal pendente. Já que eu estava com a petição em mãos, fui despachá-la com o juiz. Pedi a devida venia para ingressar em sua sala e lá expliquei o ocorrido. E adivinhe caro leitor, vossa excelência determinou na petição que o Diretor certificasse junto ao STJ o que havia acontecido com este telegrama e também que confirmasse a autenticidade da cópia que imprimi na sala da OAB pela manhã. E o melhor, “com urgência”.
Imediatamente fui ao cartório procurar pelo Diretor. Ele estava almoçando. Cogitei só protocolar a petição e ir embora, para poder continuar minhas tarefas do dia. Mas não. Pensei melhor e resolvi esperar o Diretor para entregar a petição em suas mãos. Eu precisava devolver o que recebi pela manhã.
Após meia hora esperando em frente ao cartório, ele apareceu. Fui ao seu encontro entregar a petição despachada. Disse a ele: “eis aqui a determinação do juiz para que você certifique junto ao STJ o telegrama que lhe trouxe pela manhã. Afinal, eu não recebo honorário para fazer isso.” Surpreso, sem graça e gago, ele disse: “é, é, é, agora tem determinação judicial né…”. Disse a ele em tom sarcástico: “Sim, eu recebo honorários para pedir isso né”. Depois de protocolar a petição, ele apenas se virou e caminhou para sua mesa dizendo: “tá bom Doutor, tá bom”.
Aquele primeiro serventuário com quem falei pela manhã testemunhou a cena. Sua cara era impagável. Estava claro no seu olhar a sensação de “xi, deu ruim”.
Pois é, “deu ruim”. E o mais importante, Tonho saiu naquela terça-feira, e provavelmente pôde desfrutar daquele calor atípico para época do ano com sua família em casa.
Ponto para a advocacia.
*Tonho é nome fictício.
Fonte: https://rafaelvalentini.jusbrasil.com.br/artigos/133226880/nao-recebo-honorarios-para-fazer-isso