Os efeitos retroativos das normas de natureza jurídica mista trazidas pelo Pacote Anticrime.
Nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, quando a inovação legislativa for mais benéfica ao réu, a lei penal retroagirá, devendo ser interpretada de maneira a abranger tanto as leis penais em sentido estrito, quanto as leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado ou que interfiram diretamente no status libertatis do indivíduo.
Dessa forma, em sendo reconhecida a natureza jurídica mista da norma (penal e processual penal), e em sendo ela mais benéfica ao interessado, a inovação deve ser aplicada de maneira retroativa em relação a fatos pretéritos, enquanto a ação penal não tiver transitado em julgado.
Foi com esse entendimento que o Supremo Tribunal Federal, no último mês de outubro de 2022, reconheceu a aplicação retroativa do instituto do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) instituído pela Lei n.º 13.964/19, e do requisito de procedibilidade do artigo 171, do Código Penal, incluído pela mesma lei.
Reconsiderando a decisão monocrática previamente proferida, o Ministro Ricardo Lewandowski, nos autos do Agravo Regimental no Habeas Corpus n.º 206.660/SC[1], decidiu de acordo com entendimento já aplicado pela 2ª Turma do STF[2], reconhecendo que o Acordo de Não Persecução Penal é aplicável também aos processos iniciados em data anterior à vigência da Lei n.º 13.964/2019, desde que ainda não transitado em julgado e mesmo que ausente confissão do réu até o momento de sua proposição.
A decisão monocrática tornada sem efeito seguia precedente proferido pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal[3] que reconheceu a possibilidade de aplicação retroativa do ANPP nos fatos ocorridos antes da vigência da lei, mas desde que não recebida a denúncia.
Referida divergência encontra-se sob discussão nos autos do Habeas Corpus n.º 185.913/DF[4], afetado ao Plenário pelo relator Ministro Gilmar Mendes, que tem como “questões-problemas” exatamente a) a possibilidade ou não de oferecimento de ANPP em processos já em curso; b) qual a natureza da norma inserida no art. 28-A, do Código de Processo Penal; e c) a possibilidade ou não de oferecimento do instituto mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo, ainda aguardando julgamento definitivo.
Nesse tempo, observa-se que o Ministério Público Federal tem pautado suas manifestações acerca do ANPP nos termos da Orientação Conjunta n.º 03/2018, das 2ª, 4ª e 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, admitindo a possibilidade de oferecimento do acordo em ações penais em curso, no mesmo sentido do entendimento exarado pela 2ª Turma do STF.
E, em se tratando de instituto processual penal diverso, mas igualmente fundamentando-se no entendimento da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, o Ministro André Mendonça, em decisão monocrática proferida nos autos do Recurso em Habeas Corpus n.º 219.973[5], orientou-se no sentido de ser possível a aplicação retroativa da norma, considerada de natureza hibrida, desde que, quando de sua entrada em vigor, não tenha havido o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Assim, tendo os fatos do processo em referência transitado em julgado da condenação apenas em 2022, quando já estava vigente a nova redação do art. 171, §5º, do Código Penal, que impõe a representação do ofendido como requisito de admissibilidade do delito de estelionato, entendeu o Relator ser cabível a aplicação retroativa da norma, determinando a intimação das vítimas para, caso desejem, oferecerem representação no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de decadência.
Os efeitos eleitorais decorrente do indulto presidencial.
Previsto no artigo 84, inciso XII, da Constituição Federal, o indulto presidencial é a possibilidade do Presidente da República perdoar a pena de condenados pela Justiça. Beneficiada pelo indulto em 2015, a candidata ao cargo de deputada distrital, Sra. Meire Aparecida Carmo de Oliveira, recorreu à Justiça Eleitoral para que tivesse o registro da sua candidatura deferido, apontando que o perdão da sua condenação pelo delito de uso de documento falso restabeleceu direito integral ao exercício da cidadania, incluindo sua elegibilidade.
Referendando entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça, que serviu como fundamento para o indeferimento da candidatura de Sra. Meire perante o Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, o Tribunal Superior Eleitoral, no último dia 13 de outubro de 2022, considerou nulos os votos recebidos pela candidata, por unanimidade de votos[6].
Conforme voto do relator Ministro Benedito Gonçalves, a concessão de indulto extingue tão somente os efeitos primários da condenação – pretensão executória – mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais, dentre eles a inelegibilidade decorrente de condenação, prevista na Lei Complementar n.º 64/1990.
Esse mesmo entendimento já havia sido aplicado pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, em setembro de 2022[7], para o candidato Sr. Daniel Silveira, que recebeu o benefício da graça após condenação pelo Supremo Tribunal Federal pelos crimes de coação no curso do processo e tentativa de impedir o livre exercício dos poderes da União.
O Sr. Daniel Silveira, em que pese tenha recebido 1,5 (um e meio) milhão de votos, teve, à época, o registro de sua candidatura negado, em decorrência dos mesmos fundamentos utilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral acerca dos limites de afetação aos efeitos da condenação, decorrentes da concessão do benefício presidencial.
[1] STF. AgRg HC 206.660/SC. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julgado em 03.10.2022.
[2] STF. AgRg HC 180.421/SP. Segunda Turma. Rel. Min. Edson Fachin. Julgado em 22.06.2021.
[3] STF. AgRg HC 191.464/SC. Primeira Turma. Rel. Min. Roberto Barroso. Julgado em 11.11.2020.
[4] STF. HC 185.913/DF. Plenário. Rel. Min. Gilmar Mendes.
[5] STF. RHC 219.973/SC. Rel. Min. André Mendonça. Julgado em 15.10.2022.
[6] TSE. Processo n.º 0601309-37.2022.6.07.0000. Julgado em 13.10.2022.
[7] TRE/DF. Processo n.º 0602080-79.2022.6.19.0000. Julgado em 06.09.2022.