A impossibilidade do Juízo corrigir de ofício eventuais falhas acusatórias:
O sistema processual penal brasileiro, de caráter acusatório, impõe uma clara divisão de atribuição entre os sujeitos processuais responsáveis pela acusação, defesa e julgamento da persecução penal. Destacam-se, assim, os princípios da inércia e da imparcialidade do órgão jurisdicional, inclusive na impossibilidade do julgador substituir iniciativa que seja de atribuição exclusiva da parte.
Essa compreensão dos limites de atuação do Juízo levou o Ministro Olindo de Menezes, da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, a debruçar-se, em 13 de setembro de 2022, sobre a necessidade do órgão jurisdicional rejeitar a denúncia diante de eventual falha acusatória, e não abrir prazo para que o Ministério Público a corrija.
No julgamento do Recurso em Habeas Corpus n.º 162.110/PR[1], o Ministro Relator deu provimento ao recurso para determinar o trancamento da ação penal de origem, após ordem proferida de ofício pelo Juiz de primeiro grau para que o Ministério Público eventualmente aditasse a denúncia reconhecidamente inepta.
Dentre os motivos que impõe a rejeição da denúncia, o Código de Processo Penal traz, em seu artigo 395, inciso I[2], a hipótese de manifesta inépcia da denúncia, pelo descumprimento dos requisitos previstos no art. 41, do mesmo diploma legal[3].
No caso concreto, oferecida a inicial acusatória pela prática de delito ambiental, sem mencionar o ato regulatório extrapenal necessário à compreensão da ilegalidade do ato supostamente praticado, o Juízo de origem reconheceu a impossibilidade da defesa exercer o contraditório e a ampla defesa, abrindo vista ao Ministério Público para eventual aditamento, com a consequente abertura de prazo à defesa para manifestação.
A respeito de tal proceder, primeiramente entendeu o Tribunal de Justiça do Paraná que a possibilidade de correção da denúncia conferida de ofício pelo Juiz não acarretou em nulidade vez que (i) foi aberto prazo para a defesa se manifestar acerca dos termos do aditamento da denúncia; (ii) a legislação processual penal permite o aditamento da inicial acusatória a qualquer tempo, antes da sentença; (iii) não houve alteração dos fatos; e (iv) a decisão que rejeita a denúncia não faz coisa julgada, sendo possível, “e devida, a oferta de nova inicial acusatória, sobretudo diante da obrigatoriedade da ação penal pública”.
Contudo, quando a discussão chegou ao Superior Tribunal de Justiça, conforme entendimento do Ministro Olindo de Menezes, o Juiz de Direito “não é um assessor do Ministério Público”, de modo que ainda que seja possível ao Ministério Público oferecimento de nova denúncia, pelos mesmos fatos, a necessária consequência do reconhecimento da inépcia da denúncia deve ser a rejeição da peça acusatória, impondo-se o trancamento da ação penal, como consequência lógica do sistema acusatório.
Referendadas as liminares para limitar a compra de armas de fogo:
Sancionado em janeiro de 2019 pelo Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, o Decreto n.º 9.685/2019 trouxe significativas alterações e inclusões ao texto legal do Decreto n.º 5.123/2004, que dispõe sobre registro, posse, comercialização de armas de fogo e munições em território nacional.
Poucos meses após a sanção presidencial, diversas ações no âmbito do Supremo Tribunal Federal foram propostas com intuito de questionar a constitucionalidade do mencionado Decreto, como por exemplo a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 6119/DP, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Em síntese, requer-se por intermédio da aludida ADI que se (i) confira interpretação conforme à Constituição ao requisito da efetiva necessidade, presente no art. 4º, caput, da Lei n.º 10.826, de 22 de dezembro de 2003, para que a posse de armas de fogo só seja autorizada às pessoas que demonstrem, por razões profissionais ou pessoais, possuir efetiva necessidade; e (ii) por consequência, declarada a inconstitucionalidade da efetiva necessidade pela mera residência em áreas urbanas com elevados índices de violência, presente no art. 12, §7º, IV, do Decreto n.º 5.123/2004, incluído pelo Decreto n.º 9.685/2019; e da presunção de veracidade da efetiva necessidade, previsto no art. 3º, §1º, do Decreto n.º 9.845/2019.
Iniciado o julgamento da Ação Direta perante o Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal, em 12 de março de 2021, o Ministro Relator Edson Fachin reconheceu os argumentos pela inconstitucionalidade dos dispositivos mencionados, defendendo ainda a presença dos requisitos necessários à concessão de liminar para suspensão dos efeitos dos novos dispositivos. O voto do Ministro Relator foi acompanhado pelos Ministros Alexandre de Moraes e Rosa Weber, sendo que o julgamento foi suspensos após pedido de vista do Ministro Nunes Marques.
Passado mais de um ano desde o mencionado pedido de vista, o PSB formulou pedido incidental para suspensão dos dispositivos atacados, o que foi concedido pelo Ministro Relator Edson Fachin em 5 de setembro de 2022, em especial diante do aumento do risco de violência política gerado pelo início da campanha eleitoral de 2022, observado em episódios de crimes políticos ocorridos em diversas regiões do país.
Assim é que no último dia 21 de setembro de 2022, o Tribunal, por maioria – vencidos os Ministros Nunes Marques e André Mendonça –, referendou a decisão liminar do Ministro Relator, concedendo com efeitos ex nunc a medida cautelar, para suspender a eficácia dos dispositivos questionados, fixando a orientação de que a posse de armas de fogo só pode ser autorizada às pessoas que demonstrem concretamente, por razões profissionais ou pessoais, possuírem efetiva necessidade.
Na mesma ocasião, no âmbito das ADIs 6.139/DF e 6.466/DF, a primeira proposta pela PSB e a segunda pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o Supremo Tribunal Federal também referendou por maioria a suspensão das normas que aumentaram o número de munições que podem ser compradas por mês e trecho do decreto que autoriza Caçadores, Atiradores e Colecionadores – CACs a comprar e portar de armas de uso restrito.
Quanto à aquisição de armas e munições, a orientação fixada estabeleceu que os limites quantitativos de munições adquiríveis se limitam àquilo que, de forma diligente e proporcional, garanta apenas o necessário à segurança dos cidadãos; e, quanto à aquisição de armas de fogo de uso restrito, essa só pode ser autorizada no interesse da própria segurança pública ou da defesa nacional, não em razão do interesse pessoal do requerente.
[1] STJ. RHC 162.110/PR. Rel. Min. Olindo de Menezes. Julgado em 13.09.2022.
[2] Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I – for manifestamente inepta;
[3] Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.