Os efeitos da ilegitimidade das provas produzidas em desacordo com a legislação processual penal:
A necessidade de gerência efetiva do Juízo acerca da (im)possibilidade de controle epistêmico da validade da prova que fundamenta o processo penal interfere diretamente no transcorrer da investigação e/ou da ação penal.
Foi com esse entendimento que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal deu provimento ao Habeas Corpus n.º 214.908/RJ[1] para trancar a Ação Penal de origem, após reconhecer a existência de vícios nos laudos periciais produzidos e diante da impossibilidade de elaboração de contraprova, em razão da destruição dos vestígios supostamente criminosos.
De acordo com os autos, a inexistência de laudos periciais específicos, apontando quais evidências indicariam que os isqueiros colocados à venda pelo comerciante denunciado estavam, de fato, impróprios para consumo, demandam o reconhecimento da ausência de justa causa para a persecução penal.
Conforme entendimento do em. Ministro Relator Gilmar Mendes, exarado quando do deferimento da liminar, posteriormente confirmada por unanimidade pela Turma, às carências dos laudos periciais somadas à destruição de todos os isqueiros impossibilitaram a manutenção de contraprova capaz de evidenciar a higidez das afirmações contidas nos laudos periciais. E assim, não há como possibilitar o exercício ao contraditório e do direito de defesa, sendo “dever do Estado respeitar e proteger o indivíduo contra a exposição a ofensas ou humilhações”.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, outra decisão sobre os efeitos do reconhecimento da ilegitimidade de provas merece também destaque. Concedida a ordem no julgamento do HC n.º 187.035/SP[2], com o reconhecimento da nulidade da ação penal a partir da instrução oral, por inobservância ao art. 212, do Código de Processo Penal, o Juízo de origem renovou a audiência de instrução de inquirição das testemunhas, sem, entretanto, desentranhar os atos da instrução declaradamente nula.
Alegando efetivo prejuízo ao acusado, especialmente porque os termos de informação da audiência anulada restaram utilizados pelo Ministério Público em suas alegações finais e pelo Juízo de origem, quando da prolação da sentença, a defesa requereu perante o STJ, nos autos do Agravo Regimental no Habeas Corpus n.º 744.002[3], o desentranhamento de todos os atos posteriores à audiência considerada nula.
Assim é que no último dia 20 de setembro de 2022, a Sexta Turma do STJ deu provimento ao agravo regimental, reconhecendo a impossibilidade de aproveitar os atos posteriores ao marco de nulidade estabelecido pelo Tribunal Supremo, ainda que não diretamente afetados pela inobservância do art. 212, do Código de Processo Penal, tanto em razão da clara delimitação temporal feita pelo STF, como em razão da utilização pelo Parquet dos depoimentos prestados na audiência anulada, levando a nulidade reconhecida ao alcance dos novos atos praticados.
Portanto, tem-se que a depender do momento processual e dos prejuízos que a ilegitimidade da prova gera no restante do conteúdo probatório existente no caso concreto, diversos são os efeitos da declaração da nulidade da prova, demandando, entretanto, indistintamente, a impossibilidade de sua valoração, sob pena de descumprimento das regras constitucionais e processuais penais.
Busca pessoal e a legitimidade da atuação da guarda municipal:
A Constituição Federal, quando da fixação das atribuições dos agentes responsáveis pela salvaguarda da segurança pública, previu expressamente que o exercício da atividade de polícia judiciária e apuração de infrações penais incumbe-se à Polícia Civil, ao passo que o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública cabe à Polícia Militar. Quanto à Guarda Municipal, por sua vez, o constituinte restringiu-se a atribuir, tão somente, nos termos do §8º do art. 144, da Constituição Federal, “à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”.
Não por outra razão, a existência de diversas situações envolvendo a realização de revista pessoal por parte dos guardas municipais levou o Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do REsp n. 1.977.119/SP[4], em 16 de agosto de 2022, propor criteriosa análise sobre a atuação das guardas municipais.
Como conclusão, nos termos do voto do relator em. Ministro Rogerio Schietti Cruz, delimitou-se que somente é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal se houver, além de justa causa para a medida – fundada suspeita de corpo de delito – relação clara, direta e imediata com a necessidade de proteger a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais.
Portanto, por não desempenharem a função de policiamento ostensivo, as situações absolutamente excepcionais em que a guarda pode realizar a abordagem de pessoas e a busca pessoal não se confunde com permissão para realizarem atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias militar e civil para combate da criminalidade urbana ordinária.
Assente na Corte Superior, o referido entendimento levou ambas as Turmas a reconhecerem a ilicitude das provas colhidas com base na realização de diligências ostensivas e investigativas típicas da atividade policial e completamente alheias às atribuições das guardas municipais.
Isso é o que se extraí dos autos do Agravo Regimental no Habeas Corpus n.º 771.705/SP[5], julgado em 27 de setembro de 2022, pela Quinta Turma, que reconheceu a ilicitude do encontro de pequenas porções de drogas supostamente dispensadas pelo suspeito durante a fuga, por não se vislumbrar a presença de fundada suspeita a ensejar eventual abordagem policial, tampouco situação absolutamente excepcional a legitimar a atuação dos guardas municipais, porquanto não demonstrada concretamente a existência de relação clara, direta e imediata com a proteção do patrimônio municipal.
Da mesma forma, nos autos do Habeas Corpus n.º 742578 / SP[6], a Sexta Turma, em julgamento realizado em 13 de setembro de 2022, reconheceu a ilicitude das provas obtidas por meio de indevida atuação por parte da guarda municipal, que patrulhava uma região com cão farejador de drogas e ingressou dentro do apartamento dos indivíduos investigados, em atuação “que em nada se relaciona com a proteção do patrimônio municipal”.
[1] STF. HC 214.908/RJ. Segunda Turma. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julgado em 27.09.2022.
[2] STF. HC 187.035. Primeira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em 06.04.2021.
[3] STJ. AgRg HC 744.002. Sexta Turma. Rel. Min. Laurita Vaz. Julgado em 20.09.2022.
[4] STJ. REsp 1.977.119/SP. Sexta Turma. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. Julgado em 16.08.2022.
[5] STJ. AgRg no HC n. 771.705/SP. Quinta Turma. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Julgado em 27/9/2022.
[6] STJ. HC 742.578/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. Julgado em 13/9/2022.