O meu primeiro processo penal (e foi como réu)


Foto: Agência Brasil

Nos idos de 2002, lá estava eu com os meus 11 anos de idade. Quase todo dia após chegar do colégio e almoçar, pegava minha bicicleta e ia encontrar meus amigos. Passávamos a tarde nos divertindo, jogando futebol e dando risadas. Um desses meus amigos chamava Thiago. Ele era vizinho de frente de uma amiga da minha mãe, chamada Dolores.

Um dia, logo após a aula, entrei no carro da minha mãe e despretensiosamente levei um safanão na cabeça. “Rafael, que negócio é esse de ficar xingando os outros na rua!?”. Ali começou o meu primeiro processo criminal. E na condição de réu, como já deu para perceber.

No curto trajeto à nossa casa eu perguntava a minha mãe o que tinha acontecido. Afinal, todo acusado tem o direito de saber qual é a acusação que recai contra si, não é mesmo? “Você fica xingando os outros na rua, não tem educação!”. Prosseguimos no desgostoso diálogo: “Nunca xinguei ninguém mãe, você sabe que eu não faria isso!”. “Xingou sim, você sabe do que estou falando”. “Mãe, juro por Deus, não sei do que você está falando. Eu não xinguei ninguém!”. “Xingou sim, xingou a Dolores, na frente da casa dela!”.

Logo em seguida comecei a pensar comigo mesmo: “Teria eu xingado gratuitamente uma amiga da minha mãe, na frente da casa dela, e agora não me recordava?”. No instante seguinte, lembrei do meu amigo Thiago, vizinho da Dolores. “Teria o Thiago xingado a Dolores e ela confundido ele comigo?”. “Teria alguma pessoa xingado o Thiago, a Dolores escutado, e ela confundido eu com essa pessoa e ainda achado que os palavrões foram dirigidos a ela? Se sim, conheço alguém que seja parecido comigo, a ponto de a Dolores me confundir com esse algúem?”.

Verdade seja dita: nem o Thiago e nem nenhuma das pessoas que eu conhecia lembrava a minha fisionomia (ao menos na minha opinião).

Enfim, não arredei e insisti na minha inocência. E por negar a acusação levei mais uns tabefes da minha mãe. Ela estava 110% convencida da versão apresentada pela sua amiga. Minha mãe assumiu o papel de promotora e juíza numa tacada só. Certamente ela pensou que não haveria razão para uma amiga dela me incriminar daquela forma a troco de nada. Como diz o título, esse era o meu primeiro processo penal.

Meu pai foi cauteloso à versão da Dolores. Ele veio falar comigo, com um semblante até que irritado, mas ouviu atento minha versão de inocência. Depois de ouvir, ele permaneceu em silêncio. E aqui é importante dizer que não carrego mágoas da minha mãe por não ter procedido da mesma forma. Hoje esse assunto rende boas risadas.

Depois de já ter levado umas bordoadas e estar cansado de gritar minha inocência (sem êxito), passei a vociferar: “Chamem aquela maldita aqui! Eu duvido ela confirmar isso na minha cara!”. 15 minutos depois a Dolores estava na minha casa: “Neide (prenome da minha digníssima), foi ele mesmo. Rafael, é meu dever dizer isso a seus pais como forma de ajudá-los na sua educação”. Essa segunda parte foi dita diretamente nos meus olhos. Era inacreditável. Fiquei em completo estado de choque.

Depois disso a Dolores foi embora. Eu fui para o meu quarto pensar no que tinha acontecido e tentar me convencer de que tudo era apenas um pesadelo com fortes requintes de realidade. Mas não era. Não conseguia mais argumentar a meu favor. Só queria ficar no ensurdecedor silêncio do meu quarto. Barulho? Somente no meu íntimo. “É sério que isso está acontecendo comigo? Deus (!), o que fiz para o mundo para merecer isso?”.

Os anos foram se passando. Vira e mexe a Dolores aparece na mesma casa onde eu morava à época do “processo”, para uma simples visita a minha mãe. Por muitas vezes a evitei. Mas em certas oportunidades isso era impossível como, por exemplo, nas vezes em que a Dolores vinha dar Feliz Natal a minha família. Nessas ocasiões eu mostrava a ela como tinha me tornado uma criança/adolescente/adulto educado, abraçando-a e dizendo “Feliz Natal para você também. No meu íntimo eu sempre completava essa frase com um “e mais uma vez obrigado pelos tapas mais injustos que levei na vida”. Não raro essa última parte era sucedida de palavras e adjetivos impublicáveis. Sim, sou sincero.

Hoje estou mais próximo dos 30 do que dos 20 anos. Advogo exclusivamente na área criminal e quase todos os dias ouço ou leio processos em que o reconhecimento pessoal da vítima é a única prova que baseou a condenação criminal do réu. É um proceder muitíssimo comum no dia a dia da Justiça Criminal brasileira, principalmente nos crimes patrimoniais (furto, roubo e extorsão, por exemplo) e de estupro.

É bem possível que muita gente, até mesmo os leigos, já soubesse disso. O que talvez grande parte não saiba é que a maioria dos erros judiciários são frutos de um reconhecimento pessoal equivocado, isto é, frutos de uma avaliação errada da vítima de um crime acerca de quem foi seu verdadeiro agressor.

São vários os motivos que podem levar a vítima de um crime a reconhecer erroneamente quem foi o autor do crime. Pode ser o seu profundo anseio por vingança, uma falsa memória, uma confusão real de fisionomias e etc. Independentemente do motivo, o fato é que é muitíssimo comum os juízes se fiarem no reconhecimento pessoal feito pela vítima para condenar criminalmente alguém. São nesses processos criminais que ocorrem a maioria dos erros judiciários. São neles que ocorrem a maioria das injustiças.

E que fique claro: não estou defendendo que na maioria desses processos criminais acontecem condenações injustas. Longe disso. Apenas estou dizendo que — perdón pela repetição — são neles que ocorrem a maioria das injustiças.

Enfim, carrego até hoje na lembrança a minha injustiça. Não importa quanto tempo passe, todas as vezes que eu encontrar ou lembrar da Dolores pensarei no meu primeiro processo penal. O dia em que não tive como me defender, pois de nada dispunha além da minha palavra. O dia em que fui vencido pelo perigosíssimo raciocínio aplicado diariamente na nossa Justiça Criminal: “A versão da vítima deve prevalecer, uma vez que, ao contrário do réu, ela não tem motivos para mentir ou incriminar alguém injustamente. Foi esse o raciocínio aplicado no “processo” envolvendo a Dolores e o articulista.

Mas isso tudo é só uma história (hoje) engraçada que aconteceu comigo. E que, evidentemente, não se compara a uma prisão injusta. Por essa razão penso nas diversas pessoas que foram condenadas criminalmente em razão do erro no reconhecimento pessoal realizado pela vítima. Nas pessoas que passaram dias, meses ou até mesmo anos, na prisão por conta de um crime que não praticaram (com certeza ainda há algumas que passam, infelizmente).

Ainda que essas pessoas tenham gritado aos quatro ventos suas inocências, em algum momento o juiz teve que ponderar entre as versões que lhe foram trazidas nos autos do processo, tendo prevalecido, claro, a versão da pessoa que não tinha razões para mentir.

A vítima nunca tem motivo para mentir, salvo na hipótese de ter havido algum fato pretérito que revele sua intenção de prejudicar o acusado. Já o réu, esse, sim, sempre tem motivo para mentir. Esse é o raciocínio.

Bom, críticas à parte, assim foi o meu primeiro processo penal.

Rafael Valentini é Advogado criminal no escritório Feller e Pacífico advogados, formado pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD


* A respeito do tema erro judiciário provocado por equívoco no reconhecimento pessoal, vale muito a pena a leitura sobre o “Innocence Project”, criado nos Estados Unidos. A finalidade do projeto é estudar e revisar algumas condenações criminais, e buscar a liberdade de pessoas inocentes que cumprem pena injustamente. Uma vez verificado que determinada condenação se deu por erro judiciário, advogados e experts passam a avaliar as causas que desencadearam na equivocada decisão judicial, sendo que o erro no reconhecimento pessoal é o responsável por aproximadamente 71% das mais de 300 condenações criminais que foram revertidas após exames de DNA.

Fonte: http://www.justificando.com/2017/03/14/o-meu-primeiro-processo-penal-e-foi-como-reu/

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