Enzo Fachini
Essa semana foi amplamente divulgado o pacotão “anticrime” do atual Ministro da Justiça Sérgio Moro que, como bem apontado pelo professor Cezar Roberto Bitencourt, já traz em seu nome um pleonasmo infeliz: não existe lei penal que não seja anticrime. Não existe lei penal para “facilitar” o crime ou “pró-crime”, todas elas são, necessariamente, anticrime.
Há diversos aspectos para comentar que certamente serão amplamente debatidos pelos cientistas de ciência criminal (que poucas vezes são convidados para a redação da lei, cabendo só tecer críticas posteriores). Dentre eles, tópicos que já foram julgados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, como nos casos de proibição de progressão de regime (matéria já superada pelo STF quando da análise de constitucionalidade de lei de crimes hediondos), a execução provisória da pena (matéria hoje submetida ao Supremo através de duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade), a fixação de regime inicialmente fechado dada a gravidade abstrata dos delitos, entre outros.
De outro lado, perdeu a oportunidade de dar tratamento para questões efetivas ao combate ao crime organizado sobre investigações criminais. A título de exemplo, poderia trazer a permissão expressa sobre a possibilidade de sucessivas prorrogações de escutas telefônicas, matéria já pacificada nos Tribunais Superiores no famoso “jeitinho” de interpretar a legislação.
Não se pretende aqui – deixando claro desde já – esvaziar completamente o projeto de lei, tampouco sustentar que nenhuma das medidas é eficaz ou que todo o projeto é péssimo aos olhos da justiça criminal. O incremento na tipificação do “caixa 2”, por exemplo, é um excelente avanço (apesar que, acredito eu, sofrerá para ser aprovado no Congresso Nacional).
O que se viu, na verdade, foi o cumprimento de promessas de campanha do presidente, com alterações legislativas para início da execução provisória da pena, excludente de ilicitudes para policiais em serviço, proibições e restrições sobre progressão de regime, saída temporárias, etc.
Diante de todo esse cenário, atenho-me exclusivamente sobre a forma da importação do sistema de plea bargaining, marca forte do sistema de justiça estadunidense, para nossa legislação, assunto para lá de polêmico entre operadores do Direito na área criminal, aqui chamado de “acordo de não persecução criminal”. A proposta, lembramos todos, foi apresentada como forma de imprimir maior celeridade ao sistema judiciário, para desafogar as varas superlotadas e trazer maior efetividade em termos de punição.
No entanto, na proposta tal qual apresentada, de pronto se vê que o modelo de não persecução servirá para “crimes sem violência ou grave ameaça, e com pena máxima inferior a quatro anos”. Já se exclui, de pronto, o roubo e tráfico de drogas, que são exatamente os crimes que representam a massa do Direito Penal. Qualquer alteração legislativa que excluam esses dois crimes automaticamente deixa de fora metade dos processos no judiciário.
Se cabível transação penal de competência do Juizado Especial Criminal, que são os crimes com pena máxima de até 2 anos, também não será possível aplicação do acordo de não persecução criminal, o que restringe ainda mais as hipóteses de incidência. Assim, o acordo de não persecução criminal terá cabimento para crimes com pena máxima superior a dois anos e inferior a quatro anos, deixando um leque bem reduzido de tipos penais para sua abrangência.
Bem, preenchidos diversos outros requisitos (não ser reincidente, não ter aceitado outro acordo em menos de 5 anos, ter boa conduta pessoal, expressa manifestação no sentido de abrir mão de todos os recursos cabíveis, etc. e etc.) e após a confissão formal do investigado, o acordo será redigido para a sua assinatura em conjunto com seu defensor e um membro do Ministério Público.
Aqui reside a grande diferença com o sistema estadunidense: depois de confissão formal e assinado, o acordo deve ser submetido ao juiz que, em audiência, pode – OU NÃO – homologá-lo, discricionariedade essa que não existe no sistema importado.
E, não havendo a homologação do acordo, o juiz deverá mandar o processo de volta para o Ministério Público, que poderá requerer nova produção de provas ou oferecer denúncia contra o investigado.
Ou seja: após confissão formal perante o Ministério Público, com elaboração de acordo escrito, caso esse acordo não seja homologado pelo juiz, o réu confesso será denunciado.
Poderia ter sido previsto, nesses casos, a redistribuição do processo, para que outro membro do Ministério Público assumisse a investigação e, principalmente, outro juiz fosse destinado para o julgamento da causa. Mas o “remédio” previsto na proposta de lei foi outro.
Determinou-se que o acordo fosse desentranhado do processo, sendo as partes “proibidas de fazer quaisquer referências aos termos e condições então pactuados, tampouco o juiz em qualquer ato decisório”.
Aqui, parece que o atual Ministro da Justiça se esqueceu de como é ser juiz e que, principalmente, o sistema judiciário é composto por pessoas. Você pode retirar o documento que quiser do processo, mas não consegue retirar da cabeça de um juiz que você assinou uma confissão formal.
O desentranhamento de uma prova dos autos não se equipara a lobotomia.
Vejamos então que maravilha: o investigado/acusado confessa o crime, abre mão dos seus recursos, faz um acordo com o Ministério Público, submete o acordo a um juiz e, caso seu acordo não seja aceito, vai ser processado e julgado pelo juiz que não homologou seu acordo. É ou não é para louvar de pé?
Outro aspecto que deve ser analisado diz respeito aos ganhos do acusado em eventual assinatura de acordo. Afinal, todo e qualquer acordo pressupõe ganhos para as duas partes.
A proposta traz benesses ao acusado tais quais a redução da pena mínima ao cumprimento de pena e a substituição de penas privativas de liberdade para restritivas de direito (como pagamento de prestação pecuniária, prestação de serviço à comunidade, dentre outros).
Só que é importante lembrar: pela atual sistemática de aplicação de pena no Brasil (da qual não se sugeriu alteração), sendo as circunstâncias pessoais do acusado favoráveis (condição inequívoca para a realização do acordo), os crimes cometidos sem violência ou grave ameaça (também condição), com pena máxima não superior a quatro anos (também condição) e com réu não reincidente (também condição) é possível fazer uma aposta segura, com base na jurisprudência dominante, que a pena aplicada ao caso concreto também será restritiva de direitos. De qualquer forma, ainda que houvesse condenação em regime aberto (que, na prática do Brasil, é pouco mais que nada), seria inviável pensar em condenação em regime inicial semiaberto ou fechado para caso com essas características narradas acima.
Então, a grosso modo, o acusado teria que escolher entre confessar a prática de crime, assinar um acordo de não persecução com o Ministério Público, que será submetido para um juiz, que pode homologar ou não, para quem sabe ter redução de metade da pena mínima; ou enfrentar uma acusação criminal, produzir provas em sua defesa, utilizar de todos os recursos cabíveis na sistemática processual de hoje para, ao final, muito provavelmente terminar com uma pena restritiva de direitos semelhante àquela que seria oferecida no acordo.
Não se sabe qual vai ser a efetividade da proposta e nem em que extensão será aprovada pelo legislativo. Mas, salvo maior juízo, a lei como posta no projeto não trará a efetividade pretendida. Os crimes graves estão excluídos, o que desmascara a ideia de imprimir celeridade ao processo criminal, e os crimes mais brandos apresentam uma moeda de troca muito baixa diante da incerteza de homologação do acordo.
É a barganha sem ter o que barganhar. É, e pedindo perdão aos nossos antepassados para utilizá-los de forma pejorativa, um jeito bem “tupiniquim” de elaborar acordo, trocando pau-brasil por chocalhos ou espelhos.
Fonte: https://portaldisparada.com.br/direito-e-judiciario/plea-bargaining-sergio-moro-pacote/