Você, caro leitor do universo jurídico, caso esteja lendo esse texto na sagrada hora de trabalho, naquele momento perfeito em que as pessoas estão longe, propiciando o cenário ideal para seu ócio mental pré-trabalho, ou ainda naquele cafezinho pós-almoço antes de retornar a jornada, provavelmente seus trajes são sociais. Agora, caso esteja na folga ou não pertença à panaceia dos engravatados e saltos altos, parabenizo pela roupa folgada e aproveito para convidar a fazer esse exercício fashion-histórico.
Nessa vida somos obrigados a fazer escolhas muito cedo, quase que prematuros. Mal saímos das fraldas, mal nos acostumamos com as responsabilidades que temos e precisamos optar, ao prestar o vestibular, o curso que pretendemos seguir de lá para frente. E essa decisão nos muda por completo.
Até aqui era quase matemático: seus pais escolhiam suas escolas, seus afazeres, suas atividades. Você só precisava lembra-se de ir para a aula de uniforme, aquele que era lavado todos os dias e gentilmente, como um passe de mágica, aparecia dobrado sobre a cama. Não importava que o molho de tomate respingasse na camisa na hora do almoço. Ou que chegasse todo suado da escola, depois de muito correr no recreio. A vida se ocupava das preocupações clássicas da infância e, com o tempo, da adolescência. E não, o uniforme não era uma delas. A calça rasgada, a camiseta cortada em casa, isso tudo era descolado, trazia um ar de personalidade para o “uniforme-tão-padrão-entre-os-alunos”.
Mas o ingresso na faculdade é um marco. Daqui em diante, do início à conclusão do curso, as escolhas passariam a ser somente suas.
Ingressei na faculdade de Direito como quase todo mundo: com um ímpeto de fazer justiça, de lutar pelo o que é certo. Existe uma sensação pedante de que você é, ou tão breve passará a ser, o pilar do justo no Planeta Terra. Você ainda não sabe o que é um agravo de instrumento ou um habeas corpus, mas isso é apenas um detalhe, um problema de informação que será brevemente sanado. E quando for, não só será craque, como contestará os institutos de uma forma nunca antes vista. O ponto primordial é: faremos justiça.
Esse começo da vida acadêmica é uma grande euforia.
Um ambiente novo, com pessoas de todos os lugares. Muito diferente do que foi o colégio, geralmente bairrista, é a faculdade. O contato com pessoas das mais diversas, com diferentes histórias, diferentes criações, causa uma vontade quase instantânea de desbravar esse novo mundo universitário. Pessoas que vestiram uniformes diferentes que você vestiu mas, regra geral, também estão experimentando essa sensação de liberdade de “estar sem uniformes”. Tão logo ingressa no ensino superior, a vontade de “fazer justiça” é deixada de sobreaviso. Agora é hora de experimentar.
As experiências são das mais diversas e doces que este momento, de quase adultos, poderiam proporcionar. São as festas universitárias, as boas cervejas geladas, as risadas com esse novo universo de pessoas. Um grande entusiasmo
Mas a vida te dá, rapidamente, um tapa na face.
As mudanças começam a serem notadas naquele cubículo que é a sala de aula. A passos largos somos motivados, tanto pelos colegas, quanto por nossos pais, a iniciar a vida adulta. Esse início tem um importante ritual de passagem: o primeiro estágio.
A primeira ligação de retorno do RH de um escritório. Finalmente, depois de algumas entrevistas, algum escritório interessou-se por você. E o que de início é uma grande alegria, rapidamente vira um drama: o que eu vou vestir para trabalhar nesse lugar?
Lembro hoje como os olhos da minha mãe encheram de lágrimas quando ela foi me acompanhar na compra do primeiro terno. Ou como meu pai deu risada ao me ensinar a dar nó na minha primeira gravata. Imagino que todos se lembram quando o primeiro colega da sala apareceu com “roupas de trabalho”. Parece que era chegada a hora de crescer. Quase que instantaneamente todos os demais são impulsionados a seguir os passos deste pioneiro aluno.
Aos poucos, nosso armário começa a mudar. A bermuda jeans, as camisetas de banda, as saias de verão. Vestimentas que eram comuns passam a perder espaço para as roupas sociais que escondem aquela tatuagem que você tanto gosta de mostrar. O estabelecimento da vida jurídica começa a dar as caras.
E lá vai o estagiário, dentro do ônibus, com uma mochila nas costas, carregando o Vade Mecum, com o terno todo desalinhado, para seu primeiro dia de estágio. Uma cena tragicômica de se ver.
Essa situação nos passa um ar imponente: sem saber muito o porquê, nos encontramos de terno, gravata, sapato engraxado, tailleur, tudo combinando, andando nos corredores dos fóruns para lá-e-para-cá, aprendendo na marra, finalmente, o que é o tal “agravo de instrumento”. Nos chamam de doutores. Nos sentimos importantes.
Os assuntos começam a mudar também. Seja na mesa de bar ou nos almoços de família, quase que de imediato somos colocados como grandes intelectuais. Ora te perguntam sobre temas polêmicos, gerando calorosas discussões e grandes embates ideológicos. Ora aquela sua tia te pergunta sobre-aquele-problema-trabalhista-do-amigo-da-mulher-do-trabalho dela que você não faz ideia de como resolver.
Junto com os assuntos, mudam também o jeito de se portar, o vocabulário, os gostos. O mundo jurídico te abraça de um jeito que você mal consegue respirar, quiçá se desvincular dele.
A roupa social passa a ser seu novo uniforme. Tudo isso causado por aquela escolha das quais falamos, que fizemos anos atrás, ao assinalar o curso para o vestibular.
Hoje, chega engraçado abrir o armário. Poucas são as camisetas personalizadas, outrora tão amadas, que ficava, em exposição. No lugar delas, fica nosso novo uniforme.
Atualmente, nos importamos muito com o molho de tomate que respinga na camisa antes daquela reunião para tratar de um caso super-importante com o cliente. Acariciamos o cachorro com mais cuidado, tudo isso para manter em ordem nossa nova vestimenta, que nunca mais aparecerá magicamente dobrada e limpa sobre a cama.
Mas uma coisa não mudou.
Ainda hoje, todas as manhãs, após fazer o nó na gravata (cada vez mais alinhado!), colocar o uniforme (que eu escolhi usar!) e passar o café, me vem na cabeça: hoje é dia de fazer justiça. Essa vontade sofreu, como nós, uma metamorfose. Mas não perde espaços nas nossas gavetas.
Fonte: http://www.justificando.com/2015/03/19/por-que-mudamos-tanto-com-a-faculdade-de-direito/